Apesar de a moradia – uma das necessidades mais básicas do ser humano – ser um direito social garantido pela Constituição da República, e um direito fundamental desde 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos –, ainda existe uma grande parcela da população brasileira que não tem acesso à habitação.
A discussão sobre moradia torna-se ainda mais pertinente agora com a pandemia, que tem como principal indicação o isolamento social.
A Defensoria Pública de Minas Gerais tem expressiva atuação extrajudicial e judicial em busca do direito social à moradia e à habitação digna. Atua em conflitos fundiários rurais, socioambientais e urbanos, zelando pela observância da função social, com o objetivo de minorar a exclusão social da população carente.
Córrego Ferrugem
Um exemplo é a atuação da Instituição em defesa das famílias moradoras do entorno do Córrego Ferrugem, em Belo Horizonte e Contagem, que foram removidas pelo Governo do Estado para construção de bacias de contenção de cheias (Projeto de Requalificação Urbana e Ambiental do Córrego Ferrugem).
O projeto implicou na remoção, em 2016, de várias famílias que residem ao longo do Córrego Ferrugem há anos com direito à regularização fundiária.
Para execução do projeto, o Estado iniciou vários processos de desapropriação judicial dessas famílias que, por não possuírem o título do imóvel, foram indenizadas somente pelas edificações, excluindo-se da indenização o valor do terreno onde a casa havia sido construída. O Estado oferecia também, a título de indenização, um reassentamento em unidade habitacional que seria construída com recursos públicos.
O plano do reassentamento das famílias contemplava a construção de apartamentos com a previsão de conclusão para janeiro de 2015.
O Estado não vai mais executar a obra de construção dos imóveis e garantiu o reassentamento de apenas 304 famílias.
Hoje, há 332 famílias que estão no aluguel social, recebendo R$ 500 desde 2016 sem reajuste e sem perspectiva de serem reassentadas, já que o contrato de construção das unidades habitacionais foi rescindido. A Defensoria de Minas ingressou com uma ação civil pública (ACP) em defesa dos direitos destas famílias.
Legenda:Condição dos imóveis durante a vistoria realizada pela DPMG em 2018: construção dos imóveis estava inacabada, contendo somente a parte de alvenaria em alguns blocos, sem condições de habitação
O caso ganhou novo capítulo no dia 12 de maio último, quando o Estado e as prefeituras de Contagem e Belo Horizonte firmaram um acordo para a realização das obras de contenção de enchentes.
No valor de R$ 298 milhões, o acordo prevê R$ 62 milhões para obras em bacias em Belo Horizonte e R$ 89 milhões para obras em bacias em Contagem. O reassentamento das famílias, incluindo as que perderam as casas nas chuvas desde a enchente de 2009, vai ficar por conta do Estado.
Apesar de a Secretaria de Estado de Infraestrutura e Mobilidade informar que 192 unidades habitacionais estão em execução com previsão de entrega entre novembro deste ano e maio do ano que vem, a Defensoria Pública reforça que as famílias precisam de reassentamento imediato.
“A ACP tem por objeto defender os interesses das famílias que foram removidas para a construção das três bacias de contenção de cheias. Apesar de o projeto ter iniciado em 2009, as bacias não foram construídas porque o Estado rescindiu o contrato com o Governo Federal”, explica a defensora pública Cleide Aparecida Nepomuceno, que atua na Defensoria Especializada em Direitos Humanos Coletivos e Socioambientais (DPDH), e está à frente da ação.
A defensora ressalta que o que está sendo questionado não são as obras e sim o tratamento dado às famílias. “A Defensoria Pública nunca questionou a realização dessas obras. Nós só estamos em constante diálogo com o Estado para que as famílias que foram removidas para a realização dessas obras tenham os seus direitos garantidos”, diz.
ACP
A Ação Civil Pública (processo 5034262-20-2016.8.13.0024) foi proposta em 2016 contra o Estado de Minas Gerais, o antigo Departamento de Obras Públicas do Estado de Minas Gerais (DEOP/MG) e agentes públicos responsáveis pela execução do Projeto de Requalificação Urbana e Ambiental do Córrego Ferrugem.
A ação ainda não foi julgada. O pedido principal da DPMG é a condenação do Estado na obrigação de reassentar, ou seja, entregar os apartamentos às famílias removidas.
Acordo
Os R$ 298 milhões que serão usados para as obras são provenientes do acordo assinado entre o Governo do Estado e a Vale por causa do rompimento da barragem em Brumadinho. A liberação desses valores depende da aprovação de um projeto de lei que tramita na Assembleia Legislativa de Minas.
Déficit habitacional
O Brasil registrou em 2019 um déficit habitacional de 5,8 milhões de moradias, conforme dados apresentados pela Fundação João Pinheiro em março deste ano. O indicador inclui domicílios precários, em coabitação e domicílios com elevado custo de aluguel.
Segundo a pesquisa, essas quase 6 milhões de moradias representam 8% dos domicílios do país.
O estudo apresenta uma tendência de aumento no déficit. Uma das causas para esse crescimento é o ônus excessivo com aluguel urbano, hoje caracterizado como o principal componente do déficit, respondendo por mais de metade do déficit habitacional total – um total de 3.035.739 de moradias (52% do total do indicador).
Entram nessa conta as moradias cujo custo de aluguel responde por mais de 30% da renda familiar.
Belo Horizonte
Em Belo Horizonte a situação não é muito diferente: 50 mil famílias sem casa, 64 mil moradias vazias, 822 famílias vivendo em habitação precária e outras 41 mil com ônus excessivo do aluguel.
Os números constam no relatório apresentado pelo Grupo de Trabalho sobre Direito à Moradia, constituído pela Câmara Municipal de Belo Horizonte, para fiscalizar as políticas públicas relacionadas ao direito à moradia no município.
O estudo, que foi realizado entre 2019 e 2020, contempla a reunião e o entrecruzamento de dados oficiais de fontes como o CadÚnico, do Governo Federal, o IBGE e a Fundação João Pinheiro.
O relatório ainda traz dados e ações relativas a grupos vulneráveis, como moradores em situação de rua e mulheres em situação de violência.
Segundo estimativa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a população em situação de rua no Brasil cresceu 140% a partir de 2012, chegando a quase 222 mil brasileiros em março de 2020 e tende a aumentar com a crise econômica acentuada pela pandemia da Covid-19. Entre as pessoas sem moradia estão desempregados e trabalhadores informais, como guardadores de carros e vendedores ambulantes.
Pesquisas recém-concluídas pelo Ipea alertam: a propagação do novo coronavírus aumenta a vulnerabilidade de quem vive na rua e exige atuação mais intensa do poder público.
Conforme o relatório da CMBH, dados do CadÚnico demonstram que entre janeiro de 2018 e janeiro de 2020 houve um aumento de 4.500 para 7.433 pessoas vivendo nas ruas em Belo Horizonte, um acréscimo de 65% em apenas dois anos. Esse aumento exponencial cresce a cada dia e, em julho de 2020, havia 9.114 pessoas em situação de rua em Belo Horizonte.
O estudo trata também, entre outros, de temas como as necessidades habitacionais e os vazios urbanos, conflitos fundiários, orçamento público para a habitação, análise da política municipal de habitação e moradia em contexto de emergência.
Conforme os números apresentados, o estudo conclui que “ao mesmo tempo em que há demanda por mais habitações, as cidades brasileiras contabilizam muitos imóveis vazios, não utilizados ou subutilizados”.
De acordo com a Fundação João Pinheiro, em 2015 havia quase 8 milhões de domicílios vagos no país, dos quais 6,9 milhões estariam em condições de serem ocupados e aproximadamente um milhão estaria em obras ou em reforma, compondo um estoque potencial. Destes 8 milhões, 729.902 estão em áreas urbanas de Minas Gerais, dos quais 190.238 estão na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Função social
Outra situação em Belo Horizonte que a Defensoria Pública de Minas acompanha por meio da DPDH são as ocupações por famílias sem moradia de três casarões situados no Bairro de Lourdes, na Região Centro-Sul da cidade.
Tombadas pelo Patrimônio Histórico Municipal, as edificações estão abandonadas há mais de uma década, em franco processo de deterioração, conforme alega o Movimento de Libertação Popular (MLP), que apoia as ocupações.
Os proprietários negam o abandono. Dois deles entraram com ações de reintegração de posse no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).
Um dos processos corre na 20ª Vara Cível de Belo Horizonte. O TJMG chegou a determinar a saída dos ocupantes, decisão contestada pela Defensoria Pública e pelo Ministério Público de Minas Gerais, que alegaram a situação de vulnerabilidade das famílias, sobretudo durante a pandemia. O juiz, então, resolveu ouvir os autores da ação para decidir sobre o caso.
A outra ação corre na 34ª Vara Cível da Capital. Em decisão judicial proferida em 30 de abril, a juíza responsável pelo caso condicionou a concessão da liminar à adoção de medidas de assistência aos vulneráveis pela Prefeitura de Belo Horizonte. A magistrada deu 15 dias para que a Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte (Urbel) providencie abrigo às famílias instaladas no local.
O Movimento de Libertação Popular (MLP) reivindica também que os ocupantes tenham acesso a políticas de moradia e que a Prefeitura de Belo Horizonte assuma a manutenção dos imóveis, que são tombados, mas estariam abandonados, em mau estado de conservação.
“Agora, não mais abandonados, cumprem função social. Nossa reivindicação é que a PBH desaproprie esses imóveis e os transforme em espaços de políticas públicas em favor da população de rua de BH”, diz Bruno Cardoso, integrante do MLP.
Para Cardoso, a atuação da Defensoria tem papel fundamental na defesa dos ocupantes, “fazendo peso numa balança tão desigual, em que proprietários possuem até o que nem cuidam, e quase sempre conseguem mover a força do Estado para despejar. Enquanto do outro lado estão pessoas completamente desprotegidas nas ruas, despossuídas de tudo”, afirma.
Os moradores das ocupações são réus nos processos judiciais. A Defensoria Pública de Minas Gerais se apresentou como custos vulnerabilis. Os réus ainda serão citados, podendo escolher a DPMG para representá-los judicialmente.
Custos vulnerabilis
A Defensoria Pública possui a função de custos vulnerabilis, ou seja, em todo e qualquer processo onde se discuta interesses dos vulneráveis é possível a intervenção da Defensoria Pública, independentemente de haver ou não advogado particular constituído.
Quando a Defensoria Pública atua como custos vulnerabilis, a sua participação processual ocorre não como representante da parte em juízo, mas sim como protetor dos interesses dos necessitados em geral.
É uma atuação da Defensoria Pública para que a voz dos vulneráveis seja amplificada.
Alessandra Amaral – Jornalista DPMG