Homem preso indevidamente por mais de meia década consegue indenização e pensão vitalícia em atuação da DPMG 

Por Alessandra Amaral em 19 de junho de 2024

Depois de mais de cinco anos preso indevidamente por um crime de estupro que não cometeu, F. N. S. foi libertado um dia após se tornar assistido da Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG). 

O caso 

F. N. S. foi preso em Sete Lagoas, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, por suposto flagrante delito no dia 7 de abril de 2016, quando supostamente teria praticado o delito de estupro. 

Seis dias depois, a prisão em flagrante foi convertida em preventiva e continuaram as diligências policiais investigatórias. 

Em 29 de agosto de 2016, ao verificar a existência de dúvidas fundadas sobre a existência do crime, o juízo competente determinou a revogação da prisão preventiva, que foi substituída por medidas cautelares diversas, e determinou que F. N. S. fosse colocado em liberdade. 

O alvará de soltura foi expedido e conferida a ausência de impedimento para seu cumprimento, contudo o mandado nunca foi cumprido. 

Isto porque, ao comparecer ao presídio Promotor José Costa, em Sete Lagoas, para efetivar o alvará de soltura, o oficial de justiça incumbido foi informado de que F. N. S. havia sido transferido para o presídio José Martins Drummond, em Ribeirão das Neves.  

O não cumprimento do alvará de soltura foi certificado pelo oficial de justiça nos autos do processo, no dia 31 de agosto de 2016. Depois disso, não foi expedido outro alvará de soltura destinado ao presídio de Ribeirão das Neves, e nada mais foi feito neste sentido. 

À negligência em considerar esta informação essencial, seguiram-se outras. 

Nos autos do inquérito policial foram feitos pedidos para estender o prazo para conclusão das investigações policiais, todos deferidos pelo juízo competente, sem que fosse observada a certidão negativa do oficial de justiça em dar cumprimento ao alvará de soltura. 

Somente em 3 de novembro de 2019, o órgão acusatório opinou pelo arquivamento do inquérito policial. Em 18 de dezembro de 2019, ao verificar a ausência de justa causa para o início da persecução penal, o juiz competente determinou o arquivamento do inquérito policial, sem, contudo, verificar ou certificar, mais uma vez, se F. N. S. havia sido posto em liberdade, e, portanto, sem expedir novo alvará para cumprimento imediato. 

Ocorre que ainda assim, F. N. S. permaneceu preso sem nenhum motivo que justificasse a restrição indevida de sua liberdade, mesmo tendo sido arquivado o inquérito policial. 

Em 7 de dezembro de 2021, a Defensoria Pública de Minas Gerais tomou conhecimento da prisão indevida de F. N. S., durante um mutirão de atendimento jurídico no presídio José Martins Drummond, realizado pela Instituição em parceria com a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública.  

A Defensoria Pública, então, comunicou imediatamente a prisão indevida ao juízo competente que, no mesmo dia, determinou a soltura de F. N. S. 

Finalmente, em 8 de dezembro de 2021, após ter ficado preso indevidamente por mais de 5 anos e 3 meses, F. N. S. foi colocado em liberdade. 

Diante do nítido quadro de responsabilidade estatal por erro judiciário, a defensora pública Camila Dantas ajuizou ação de indenização por danos morais, existenciais e pensão alimentícia vitalícia. 

Camila Dantas, que atua na execução penal em Sete Lagoas, conta que se sentiu tocada pela vulnerabilidade e o desemparo que F. N. S. viveu no cárcere.  

Para ajuizar a ação, foi preciso procurá-lo pela cidade. A defensora buscou instituições públicas em procura do assistido. “Fui ao Fórum e ao Centro Pop de Sete Lagoas, deixei meu contato e o pedido de que ele comparecesse à sede da Defensoria Pública, caso aparecesse”.  

Deu certo. Ele foi e, grato e emocionado, concordou com o ajuizamento da ação de indenização.  

Os danos específicos suportados pelo assistido 

Quando foi preso injustamente, F. N. S. já era pessoa com deficiência, por ter déficit cognitivo.  

Já era diagnosticado com epilepsia e, enquanto esteve preso, sofreu severas crises epiléticas que nunca foram tratadas de imediato por profissionais da saúde na unidade prisional, mas sim por outros indivíduos presos que habitavam a mesma cela em que se encontrava. 

Além disso, anteriormente à prisão, possuía apenas parte da visão do olho direito, tendo a enfermidade se agravado com a ausência de tratamento no cárcere, culminando na perda completa da visão deste olho.  

F. N. S. não possui os ossos da mandíbula e já havia realizado procedimento para reconstituição craniana. Todos esses problemas de saúde, embora preexistentes ao cárcere indevido, tornaram-se ainda mais penosos para o assistido, que teve que suportar o cárcere sem quase nenhuma assistência. 

Também durante todo o tempo em que esteve preso injustamente, o assistido nunca recebeu visitas ou encomendas de seus familiares. 

Além disso, a privação da convivência familiar basicamente destruiu o vínculo parental de F. N. S. com seu filho, que estava com oito anos quando ocorreu a prisão, circunstância que rompeu abruptamente o vínculo familiar. O filho vivia em um bairro distante em Sete Lagoas e eles mantinham contato e se encontravam às vezes. 

Perícia 

Diante desses fatos, a defensora pública Camila Dantas solicitou uma perícia no Instituto Raul Soares para demonstrar as sequelas do trauma vivido pelo assistido. O Raul Soares é vinculado à Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais, entidade integrante da própria administração indireta estadual. 

Como a perícia seria em Belo Horizonte e havia a dificuldade para o deslocamento do assistido, que estava em Sete Lagoas, Camila Dantas conseguiu autorização da Defensoria Pública-Geral para levá-lo em veículo oficial da Defensoria Pública. 

O parecer elaborado pelos médicos foi conclusivo no sentido de que as sequelas resultantes do trauma decorrente dos longos anos de prisão indevida foram determinantes para a debilidade e incapacidade para trabalhar permanentes de F. N. S. 

Decisão em primeira instância 

Em primeira instância, a juíza de Sete Lagoas fixou a indenização por danos morais em R$ 150.000, mas negou o pedido de pensão vitalícia. A magistrada levou em consideração as circunstâncias do fato; as condições socioeconômicas de F.N.S., que era pessoa em situação de rua; a gravidade objetiva do dano; e o seu efeito lesivo.  

Diante da injustificável negligência dos agentes estatais que perdurou por mais de meia década, a defensora pública recorreu da decisão.  

“O tempo de prisão injusta de mais de 1.915 dias extirpou de o autor ter uma vida digna mínima: ter uma moradia fixa; ter um emprego; poder dormir e acordar sem medo; ter seu cantinho onde possa comer, beber e viver de forma tranquila”, afirmou Camila Dantas no recurso. 

“Não foi levada em consideração, na medida adequada, a gravidade do fato, a magnitude do dano, a extensão das sequelas sofridas pelo apelante, as condições econômicas e sociais, de forma a proporcionar ao ofendido uma satisfação pessoal, de maneira a amenizar o sentimento do seu infortúnio”, continuou a defensora pública na apelação. 

Indenização e pensão vitalícia 

O juízo de segunda instância fixou a indenização por danos morais no patamar de R$ 500.000, bem como danos materiais, na forma de pensionamento mensal vitalício no valor de um salário-mínimo. 

Além disso, foi concedida a tutela provisória que havia sido indeferida em primeira instancia, mas reiterada pela DPMG, determinando que o Estado de Minas Gerais inicie o pagamento da pensão no mês imediatamente seguinte à publicação do acórdão. 

Na decisão, a desembargadora relatora considera que o “equívoco foi de todo o sistema acusatório”. “É injustificável a negligência dos agentes estatais na prática de ato que atinge dos mais relevantes atributos da personalidade humana – a liberdade de locomoção”. 

A magistrada afirmou ainda que “há que se considerar os relatos do autor de que passou por negligência médica, agressões físicas e precariedade sanitária durante o tempo em que esteve custodiado em regime fechado”. 

F.N.S. não gosta de falar sobre o tempo que passou na prisão. Prefere relatar a alegria da saída. “Quando saí, fiquei alegre. Mas quando me perguntaram o que aconteceu e eu contei o que apanhei e o que bati, a alegria ficou triste”, conta.  

Como defensora pública que acompanhou de perto a história de F.N.S., Camila Dantas afirma carregar consigo a marca profunda da injustiça que ele sofreu. Para ela, seu caso é um lembrete gritante da importância da Defensoria Pública na luta por justiça e na defesa dos direitos dos mais vulneráveis. 

“Ao me deparar com a situação de F.N.S., um misto de indignação e determinação me consumiu. Era inadmissível que um homem inocente estivesse privado de sua liberdade por tanto tempo, vítima de falhas do sistema judicial e nada fosse feito. Nesse momento, a missão da DPMG se tornou ainda mais clara: garantir que a justiça fosse feita, mesmo que tardia”, afirmou. 

O caso expõe as falhas do sistema judicial e a necessidade de uma instituição vocacionada ao acesso à justiça de todos, independentemente da condição social ou econômica. 

“Através da atuação incansável da Defensoria mineira, F.N.S. finalmente teve sua liberdade restituída e recebeu a devida indenização pelos danos sofridos. Essa conquista é um aprendizado constante para todos nós e transcende a esfera individual na medida que destaca algumas das missões mais nobres da Defensoria Pública: a primazia da dignidade da pessoa humana; a redução das desigualdades sociais, para que todos tenham oportunidades iguais de desenvolvimento e realização pessoal; e a prevalência e efetividade dos direitos humanos”, finalizou a defensora pública Camila Dantas. 

Alessandra Amaral – Jornalista DPMG. 

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