Nova norma estabelece medidas para prevenir e solucionar o superendividamento dos consumidores e promove práticas de crédito responsável
A entrada em vigor, em 2 de julho, da Lei do Superendividamento (Lei 14.181/21) é uma esperança para os quase 64 milhões de brasileiros que estão inadimplentes, segundo dados da Serasa coletados em janeiro deste ano. A nova lei atualiza o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso para incluir regras de prevenção ao superendividamento dos consumidores e prever audiências de negociação entre credor e devedor.
Em Belo Horizonte a situação de endividamento não é muito diversa. Uma pesquisa da Federação do Comércio de Minas Gerais (Fecomércio) aponta que, em junho deste ano, 78,5% das famílias da capital mineira estavam endividadas.
Segundo o estudo, metade da renda familiar de 81,3% dos entrevistados é comprometida com as dívidas. Em 21,3% dos casos, ela atinge mais de 50%.
A pesquisa mostra ainda que 16,8% da população de BH desistiu de pagar os boletos porque não têm mais condições. Outros 35,2% estão com dívidas atrasadas, mas ainda demonstram disposição em negociá-las.
O foco da Lei do Superendividamento são os consumidores que compram produtos ou contratam crédito em instituições financeiras, mas ficam impossibilitados de honrar as parcelas por desemprego, doença ou outra razão.
O texto considera superendividamento a “impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial”.
A nova lei também cria instrumentos para conter abusos na oferta de crédito a idosos e vulneráveis.
Empréstimo infinito
Este foi o caso do aposentado E.J.L.S., que contraiu um empréstimo no Banco Mercantil do Brasil em 2011 e, a partir do ano seguinte, teve sua dívida renovada automaticamente até 2019, quando procurou a Defensoria Especializada do Consumidor, em Belo Horizonte.
Segundo a sobrinha do aposentado, que passou a conduzir as negociações do tio, devido à sua dificuldade de entendimento, as renovações do empréstimo foram feitas sem o conhecimento de E.J.L.S.
“Ele ia ao banco sozinho e sempre que era liberada uma margem os atendentes, que o acompanhavam por ser idoso e ter dificuldades, o ajudavam a sacar sua aposentadoria e faziam a renovação dos empréstimos no caixa eletrônico, sem informá-lo, sem explicar o que ia ser feito e como funcionava”, conta a sobrinha.
Conforme o relato dela, o último empréstimo foi renovado em abril de 2019. “Ele estava pagando uma parcela de aproximadamente R$ 350, já estava na 25º parcela, faltavam 11 quando renovaram o empréstimo, liberando R$ 2.958,86. Esse valor foi usado automaticamente para pagar o restante do empréstimo anterior, sobrando R$ 200 para meu tio. Aí, o empréstimo foi renovado em 28 parcelas de R$ 284,39, começando tudo de novo e dobrando a quantidade de parcelas sem que ele tenha percebido”.
Procurada pela sobrinha do aposentado, a Defensoria Especializada do Consumidor então emitiu ofício ao Banco Mercantil do Brasil alertando sobre a formalização do acordo nos autos da Ação Coletiva de Consumo, nº 5085017-14.2017.8.13.0024, que estabeleceu diversas obrigações para a instituição financeira.
Ação Coletiva de Consumo
A ação coletiva foi ajuizada em junho de 2017, pela Defensoria Especializada do Consumidor, em parceria com o Instituto de Defesa Coletiva e o Procon Municipal, contra o Banco Mercantil do Brasil.
Requereu a suspensão da prática das renovações unilaterais de empréstimos, considerada abusiva, mantendo o acordado no contrato original, além da repetição de indébito dos valores cobrados indevidamente, e pelos danos morais coletivos.
Em março de 2018 a 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais homologou o instrumento de transação firmado entre as partes. O acordo estabeleceu como adequação de condutas a evolução do modus operandi de contratação e renovação de empréstimos, nos caixas eletrônicos, com a inclusão do “quadruple check”, constando alertas sobre a voluntariedade da contratação e a possibilidade de desistência da contratação em até sete dias.
O acordo da ação coletiva tem abrangência nacional e estabelece a resolução dos problemas diretamente com a ouvidoria do banco.
Negociação
Para resolver o problema do aposentado E.J.L.S., a Defensoria Especializada do Consumidor propôs uma negociação entre as partes. Com isso, foi acordada a liquidação total do saldo devedor de E.J.L.S. e o crédito, em seu favor, no valor de R$ 5.972,19, valor cheio das 21 parcelas pagas por ele em um dos empréstimos.
A coordenadora da Defensoria Especializada do Consumidor, defensora pública Sabrina Torres Lamaita Ielo, comenta a importância da Lei do Superendividamento.
“Desde sua criação, a Especializada atua com assistidos superendividados, porém, antes da lei não conseguíamos prestar o devido auxilio para o consumidor, já que não existia nenhuma legislação que obrigava o fornecedor a negociar com o consumidor”, lembra a defensora pública. “Agora, a nova lei possibilitou a formação de centros de conciliação nos órgãos que fazem parte do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. E a Defensoria Pública, por fazer parte desse Sistema, poderá celebrar esse tipo de acordo”, observa Sabrina Lamaita.
Lei do Superendividamento
A nova lei prevê as seguintes medidas, entre outras:
– Torna direito básico do consumidor a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial.
– Torna nulas cláusulas contratuais de produtos ou serviços que limitem o acesso ao Poder Judiciário ou impeçam o restabelecimento integral dos direitos do consumidor e de seus meios de pagamento depois da quitação de juros de mora ou de acordo com os credores.
– Obriga bancos, financiadoras e empresas que vendem a prazo a informar ao consumidor o custo efetivo total, a taxa mensal efetiva de juros e os encargos por atraso, o total de prestações e o direito de antecipar o pagamento da dívida ou parcelamento sem novos encargos. As ofertas de empréstimo ou de venda a prazo deverão informar ainda a soma total a pagar, com e sem financiamento.
– Proíbe propagandas de empréstimos do tipo “sem consulta ao SPC” ou sem avaliação da situação financeira do consumidor.
– Proíbe o assédio ou a pressão sobre consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente em caso de idosos, analfabetos, doentes ou em estado de vulnerabilidade.
– Permite que o consumidor informe à administradora do cartão de crédito, com dez dias de antecedência do vencimento da fatura, sobre parcela que está em disputa com o fornecedor. O valor não poderá ser cobrado enquanto não houver uma solução para a disputa.
Alessandra Amaral / Jornalista DPMG