A Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG) expediu recomendação ao Prefeito de Belo Horizonte para que vete o Projeto de Lei n. 545/2023 aprovado em segundo turno neste mês pela Câmara Municipal.
O PL tem como objetivo reduzir para cinco anos o prazo para extinção das carroças tracionadas por animais em Belo Horizonte, estabelecendo o dia 22 de janeiro de 2026 como data limite. Se sancionada, a proposição vai alterar a Lei Municipal 11.285/2021, que prevê o prazo até 2031 para que os carroceiros substituam os cavalos no exercício de seu trabalho.
Dessa forma, para buscar de forma administrativa providências para a proteção do patrimônio histórico e cultural do Estado, além de salvaguardar os direitos do grupo atingido, especialmente quanto à preservação e o respeito à sua identidade social e cultural, aos seus costumes, tradições, práticas e valores, a Defensoria Pública instaurou o Procedimento Administrativo de Tutela Coletiva PTAC n. 110.2023, SEI n. 9990000001.005051/2023-17, do qual adveio a recomendação.
Vícios de inconstitucionalidade
Na recomendação, a Defensoria Pública aponta diversos vícios de inconstitucionalidade formal que atingem o PL 545/2023, bem como a Lei Municipal 11.285/2021, por violação das competências legislativas da União e por ofensa ao princípio da separação dos poderes.
A Instituição também aponta inconstitucionalidade material, tanto do PL quanto da Lei 11.285/2021, em razão de ofensa aos direitos e garantias fundamentais, como o direito à proteção do patrimônio histórico e cultural, além de violação aos postulados da liberdade de locomoção, livre iniciativa e exercício do trabalho.
Dentre os argumentos, a Defensoria Pública elenca informações sobre o contexto histórico e modos de vida do coletivo de carroceiros de Belo Horizonte e Região Metropolitana, reconhecido como comunidade tradicional e certificado pela Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais (CEPCT-MG).
“Os carroceiros tradicionais utilizam saberes e práticas transmitidas e transformadas ao longo das gerações, mas também incorporam saberes técnicos médico-veterinários e se adequam às normas municipais, estaduais e nacionais que regulam o trânsito e o meio ambiente”.
Em relação aos cuidados com os animais, o documento explicita a distinção entre carroceiros tradicionais e transportadores, ressaltando que o respeito e o afeto entre tutor e animal fazem parte da cultura carroceira.
Outro ponto destacado é que os maus-tratos contra animais já são coibidos pela legislação, inclusive penal, não sendo necessária a proibição genérica de toda a atividade tradicional carroceira para que a proteção aos animais seja efetivada.
Racismo ambiental
Em Belo Horizonte, a Lei Municipal n. 10.119/2011 dispõe sobre a circulação de veículos de tração animal e de animais, montados ou não, em via pública e já prevê normas que asseguram a saúde e o bem-estar desses seres vivos não humanos.
A recomendação também alega existência de racismo ambiental contra a comunidade carroceira e explica que o trabalho humano e animal com as carroças não pode ser sinonimizado a maus-tratos.
“A legislação vigente que regulamenta a tração animal no município de Belo Horizonte (Lei Municipal n. 10.119/2011) estabelece as normativas quanto a diversos aspectos técnicos do trabalho carroceiro, tais como os limites máximos de carga, dimensões das carroças e exigências quanto ao cuidado com a saúde e a alimentação dos animais”, diz a recomendação. Dessa forma, segundo pontuado pela Defensoria, basta que o Município fiscalize o respeito a essas regras, não sendo razoável a generalização e a proibição absoluta.
Ainda conforme alegado pela Defensoria Pública no documento, a própria comunidade carroceira se mobiliza no sentido de aprimoramento dos instrumentos legais exigidos para maior garantia de bem-estar e defesa dos direitos animais.
A recomendação cita que o ofício e modo de vida da Comunidade Tradicional Carroceira são patrimônios culturais de natureza imaterial e, segundo a Constituição Estadual, devem ser protegidos pelo Estado, com a colaboração da comunidade.
Outro ponto é a ausência de consulta prévia à Comunidade Tradicional Carroceira, violando a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho e o desrespeito à Lei Estadual n. 21.147/2014, que criou a Política para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais.
Na recomendação, a Defensoria Pública alerta que “o teor do Projeto de Lei n. 545/2023 tem o condão de levar à extinção tal grupo social, sepultando suas formas particulares de fazer e vier, ao proibir em caráter absoluto e definitivo o uso de carroças na cidade de Belo Horizonte”.
Sob o aspecto da inconstitucionalidade material, a DPMG elenca a violação à liberdade de locomoção, à livre concorrência e ao exercício do trabalho.
“A Lei Municipal e o Projeto de Lei modificativo em comento, a pretexto de coibir maus-tratos a animais, dissociam-se dos casos concretos e proíbem genericamente veículos de tração animal, ainda que o carroceiro, na prática, seja cuidadoso e respeitoso para com seu cavalo”.
Além disso, o Projeto de Lei elimina, apenas na cidade de Belo Horizonte, uma das modalidades de transporte admitidas em todo o país pelo Código de Trânsito Brasileiro, limitando, assim, a liberdade de locomoção de cidadãos da capital, mas também das cidades do entorno.
Subsistência
O documento revela também que milhares de pessoas dependem desses veículos de tração animal para o desempenho de seu trabalho. Desse modo, a proibição do uso de carroças afeta atividades produtivas e laborais dignas e legítimas, das quais inúmeras famílias dependem para a sua subsistência, aprofundando as dificuldades socioeconômicas.
Do ponto de vista dos vícios de inconstitucionalidade formal, tanto a Lei Municipal quanto o PL, ao vedarem o uso de veículos de tração animal no âmbito municipal, instituem uma norma de caráter geral sobre trânsito e transportes, em afronta ao Pacto Federativo e à Constituição Federal, que atribui tal competência legislativa em caráter privativo à União.
A recomendação destaca que os veículos de tração animal são permitidos pela legislação federal e que, caso um município pudesse, isoladamente, proibir essa modalidade de transporte apenas em sua área geográfica, haveria diversos entraves para a livre circulação no território nacional, especialmente em uma Região Metropolitana, marcada por várias cidades conectadas e adensadas.
Outro aspecto abordado na recomendação é o vício formal de iniciativa da Lei Municipal e do Projeto de Lei, já que foram apresentados por membros do Poder Legislativo, contrariando o princípio da separação dos poderes.
A Lei Municipal e o PL estabelecem proibições e preveem sanções que exigirão atividades fiscalizatórias, atividades que são impostos a órgãos públicos integrantes da estrutura do Executivo municipal. Desse modo, tanto a norma vigente quanto o projeto aprovado pela Câmara só poderiam ser validamente submetidos ao processo legislativo por iniciativa do próprio Prefeito do Município do Belo Horizonte.
Assim, para evitar graves danos à Comunidade Tradicional Carroceira de Belo Horizonte e Região Metropolitana, grupo social já vulnerabilizado, a Defensoria Pública de Minas Gerais recomenda ao Poder Executivo Municipal que seja exercido o autocontrole de constitucionalidade, de modo que seja vetado integralmente o Projeto de Lei n. 545/2023.
Datada de 27 de outubro, a recomendação fixa o prazo de cinco dias para resposta.
Assinam o documento o Coordenador Estratégico de Tutela Coletiva, defensor público Paulo César Azevedo de Almeida, e a defensora pública Ana Cláudia da Silva Alexandre Storch, em atuação na Defensoria Especializada em Direitos Humanos, Coletivos e Socioambientais (DPDH).
Alessandra Amaral – Jornalista DPMG.