Procedimento será feito por meio de aparelhagem eletrônica. Medida contribui para a garantia de dignidade e confere prioridade absoluta na proteção dos direitos dos adolescentes
Em breve, adolescentes que cumprem medidas socioeducativas em Minas Gerais não serão mais submetidos à revista vexatória nas unidades do Estado, que passarão a adotar equipamentos de scanner corporal, possibilitando a realização da revista de forma bem menos invasiva.
A modificação dos procedimentos, que serão adequados gradualmente nas unidades, foi solicitada pela Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG), por meio da Coordenadoria Estratégica de Tutela Coletiva (CETUC) e pela Coordenação Estadual de Promoção e Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes (CEDEDICA), em recomendação emitida à Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) e à sua Subsecretaria de Atendimento Socieducativo (Suase).
A revista vexatória, também conhecida como revista íntima, consiste na vistoria pessoal e minuciosa dos adolescentes, especialmente nos momentos de entrada ou retorno às unidades socioeducativas. Nessa modalidade de revista, é feita a verificação detalhada do corpo das pessoas revistadas, inclusive de suas partes pudicas, exigindo, com isso, o desnudamento pela retirada de suas roupas e sapatos.
Em Minas Gerais, o procedimento é regulamentado por norma da Sejusp, sendo que a forma como tem sido realizado nas unidades socioeducativas “conduz a uma repetida exposição do corpo do adolescente, levando a um agudo constrangimento imposto a todos os socioeducandos, pessoas que ainda se encontram em fase de desenvolvimento corporal e sexual”, conforme aponta a recomendação da DPMG.
Adolescentes hipervulnerabilizados em função da identidade de gênero
Esta atuação extrajudicial da Defensoria mineira começou após a Instituição tomar conhecimento de violações de direitos individuais e coletivos de adolescentes transgênero nas unidades socioeducativas.
Entre as diligências providenciadas pela DPMG para apuração das denúncias, foi realizada, em outubro de 2022, uma Audiência Pública Interinstitucional, com a participação do Ministério Público estadual, professores e pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), agentes de segurança de unidades socioeducativas, órgãos do Estado (dentre eles membros da Suase/Sejusp) e representantes da de movimentos sociais e da sociedade civil, além de adolescentes transgênero em cumprimento de medidas.
Ao se manifestarem, os adolescentes relataram, como principal reclamação, a submissão à revista íntima vexatória com nudez e agachamento. Naquela oportunidade, os socioeducandos indicaram a necessidade de implantação de equipamentos tecnológicos para evitar os constrangimentos sofridos.
Argumentos
Na fundamentação contida na recomendação, a Defensoria Pública citou as garantias e princípios fundamentais da Constituição da República e sua previsão de que a “família, a sociedade e o Estado têm o dever de assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, dentre outras garantias, o direito à vida, à saúde, dignidade, ao respeito, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
A DPMG também citou a Resolução 5/2014 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), aplicável por analogia, que prevê que a revista se dê por meio de equipamentos eletrônicos, devendo ser realizada manualmente apenas em situações excepcionais. A mesma resolução também proíbe expressamente qualquer forma de revista vexatória que envolva o desnudamento parcial ou total, dentre outros tratamentos de caráter constrangedor e aviltante.
Outra situação apontada pela recomendação é existência de aparelhos de scanner corporal já em operação em diversas unidades prisionais do Estado, sem que haja um investimento igual e antecedente para a instalação de equipamentos similares no sistema socioeducativo. Essa inversão configuraria, então, o descumprimento da norma constitucional que determina que os direitos de crianças e adolescentes sejam garantidos com absoluta prioridade em relação aos demais grupos.
Neste sentido, a Defensoria também citou a Lei 12.594/2012, responsável por instituir o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), e que determina que o adolescente não pode receber tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto em cumprimento de pena.
Em relação à vulnerabilidade dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, o defensor público Paulo Cesar Azevedo de Almeida, que assina a recomendação e está à frente da Coordenadoria Estratégica em Tutela Coletiva (CETUC), observa que o constrangimento decorrente dessa vistoria corporal invasiva é ainda mais danoso quando se trata de pessoas que expressam identidade de gênero como transexuais ou travestis.
“Essas regras de disciplina e segurança internas, que levam a uma exposição forçada de partes do corpo aos agentes públicos que atuam na unidade, redundam em situação ainda mais aviltante no caso de adolescentes travestis ou transexuais. Isso porque suas genitálias, impostas pelos padrões biológicos e pelo nascimento (e protegidas na intimidade das vestes), não condizem com o gênero socialmente performado por eles. Contudo, a partir da inserção desses adolescentes transgênero no sistema socioeducativo, seus órgãos sexuais passam a ser expostos impositivamente a terceiros: os agentes socioeducativos”.
Procedimento constrangedor para agentes socioeducativas
A recomendação cita, ainda, mandado de segurança impetrado pelo Sindicato dos Servidores Públicos do Sistema Socioeducativo do Estado de Minas contra o dispositivo estadual que rege o procedimento de revista minuciosa em adolescentes trans e travestis. O dispositivo impõe que as revistas minuciosas em todos os adolescentes transgênero (com identidade de gênero masculina ou feminina) sejam feitas por agentes socioeducativas femininas.
No mandado de segurança, o Sindicato afirma que a imposição afronta a dignidade da agente, “que fica exposta a um procedimento constrangedor ao lidar com genitálias do sexo oposto”. O mandado alega ainda violação dos direitos fundamentais de muitas agentes, “pois essa revista contraria seus sentimentos religiosos e convicções filosóficas”.
Ao citar na recomendação os fundamentos apresentados do mandado de segurança, “que representam e justificam a pretensão de uma classe profissional”, a Defensoria Pública pontua que a manutenção do procedimento de vistoria minuciosa vem gerando desconforto a uma parte significativa das agentes socioeducativas, fato que torna a revista ainda mais difícil e degradante para adolescentes transgênero.
“É certo que essa declarada repulsa ao corpo transgênero (a ponto de levar à judicialização da questão) torna todo o procedimento ainda mais aviltante para os adolescentes trans inseridos no sistema socioeducativo, já que são submetidos a essa situação invasiva e de exposição de sua intimidade, contra a sua vontade, tendo que conviver, ainda, com reações de desgosto, aversão e incompreensão de seus corpos por parte de quem executa a revista”, argumenta o defensor Paulo Cesar Azevedo.
Apesar deste público sofrer de maneira mais aguda com a discriminação, a abjeção e o constrangimento, a medida pleiteada pela Defensoria mineira busca não apenas o amparo aos adolescentes transgênero, mas sim o resguardo dos direitos fundamentais de todos os adolescentes que cumprem medidas sancionatórias por atos infracionais.
Resposta
Em resposta à recomendação, a Sejusp informou que viabilizará a aquisição dos instrumentos de scanner corporal, com a apresentação de cronograma para equipagem das unidades socioeducativas, prevista para se encerrar já no segundo semestre deste ano.
A Secretaria informou ainda que, até a instrumentalização das unidades, a revista será mantida, mas que a Pasta promoverá capacitação de “seus servidores e intensificará o acompanhamento da execução das rotinas nas unidades, de forma a garantir que as revistas sejam procedidas no estrito limite de sua necessidade, como garantidora da segurança e para coibir a imposição de qualquer constrangimento ou gratuita exposição aos adolescentes”.
Atuação extrajudicial
O defensor público Paulo Cesar Azevedo considera o resultado obtido como um importante êxito para a construção de uma política pública socioeducativa que garanta a dignidade e assegure prioridade absoluta na proteção integral dos direitos de crianças e adolescentes.
“É uma grande vitória. Conseguimos resolver uma questão de grave violação de direitos humanos de adolescentes vulneráveis pela via extrajudicial, sem necessitar da judicialização, o que assegura protagonismo à população vulnerabilizada e, sobretudo, celeridade na proteção das garantias fundamentais”, finaliza o coordenador da CETUC.
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Alessandra Amaral – Jornalista DPMG